Para compreender gentrificação, imagine um bairro histórico em decadência, ou que apesar de bem localizado é reduto de populações de baixa renda, portanto, desvalorizado. Lugares que não oferecem nada muito atrativo para fazer… Enfim, lugares que você não recomendaria o passeio a um amigo.
Imagine, porém, que de um tempo para cá, a estrutura deste bairro melhorou muito: aumentou a segurança pública e agora há parques, iluminação, ciclovias, novas linhas de transporte, ruas reformadas, variedade de comércio, restaurantes, bares, feiras de rua… Uma verdadeira revolução que traria muitos benefícios para os moradores da região, exceto que eles não podem mais morar ali.
É que, depois de todos esses melhoramentos, o valor do aluguel dobrou, a conta de luz triplicou e as idas semanais ao mercadinho da esquina ficaram cada vez mais caras, ou seja, junto com toda a melhora, o custo de vida subiu tanto que não cabe mais no orçamento dos atuais moradores. E o mais cruel de tudo é perceber que, enquanto o antigo morador procura um novo bairro, pessoas de maior poder aquisitivo estão indo morar no seu lugar.
Talvez você já tenha passado por essa situação. Mas, se não passou, deve imaginar que é a história de muita gente. E o nome dessa história é gentrificação.
Gentri o quê?
Gen-tri-fi-ca-ção. Trata-se de neologismo que remete aos Gentry, classe social da Inglaterra medieval, de status inferior ao da nobreza e superior ao dos fazendeiros proprietários. Possuíam terras, mas não trabalhavam. Viviam de renda, mas não eram nobres. O resgate irônico dessa figura e sua apropriação no contexto contemporâneo se deve à socióloga Ruth Glass, que observou um movimento da classe média de Londres em 1960 “invadindo” bairros operários e alterando seu perfil.
Esse movimento fez disparar preços imobiliários, acabando por “expulsar” os antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos donos do pedaço. O evento foi chamado de gentrification, que numa tradução literal, poderia ser entendida como o processo de enobrecimento, aburguesamento ou elitização de uma área.
Como funciona?
Processos de gentrificação se assemelham (e, de fato, às vezes confundem-se) a projetos de revitalização urbana, com a diferença que a revitalização pode ocorrer em qualquer lugar da cidade e normalmente está ligada a uma demanda social bastante específica. A gentrificação, por sua vez, se apoia no discurso de “obras que beneficiam a todos” mas não motivada pelo interesse público, e sim pelo privado. Relaciona-se também com projetos de especulação imobiliária. Logo, tende a ocorrer em bairros centrais, históricos, ou com potencial turístico de reuso adaptativo.
O processo é bastante simples: suponha que o preço de venda de um imóvel em um bairro degradado seja R$80 mil. Porém, se este bairro estivesse revitalizado, o mesmo imóvel poderia valer até R$200 mil. Há, portanto, uma diferença de 150% entre o valor real e o valor potencial do mesmo imóvel, certo?
É exatamente nesta diferença entre o potencial e o real que os investidores imobiliários enxergam a grande oportunidade: lucrar muito investindo pouco. Contudo, para que isso se concretize, faz-se necessária a revitalização urbana – aí sim, bancada com dinheiro público ou através de concessões públicas. Governantes também costumam enxergar no processo de gentrificação oportunidades para justificar obras, por exemplo.
E aonde acontece?
Em muitos lugares. Hoje em dia, fala-se em gentrificação planetária. Evidentemente, existem alguns exemplos mais clássicos, em virtude da fama e influência que algumas cidades possuem, ou por conta do contexto histórico envolvido. Vamos destacar rapidamente dois deles:
1. Williamsburg (Nova York, EUA)
Até meados da década de 1990, Williamsburg era apenas mais um bairro residencial do distrito do Brooklyn, cujo único atrativo era sua paisagem – o famoso skyline da Ilha de Manhattan. Foi nessa época que artistas e artesãos locais migraram para o bairro em busca de aluguéis baratos e boa localização. Esse movimento se intensificou até virar um dos maiores casos de gentrificação que se tem conhecimento: hoje, é um dos bairros mais badalados do mundo, que dita algumas das referências de moda, música, arte e gastronomia da sociedade ocidental. O processo foi tão grande que alguns dos próprios gentrificadores, precisando fugir do alto custo de vida, se mudaram para o bairro vizinho, Bushwick, que atualmente passa um processo quase idêntico ao de Williamsburg no começo dos anos 2000.
2. Friedrichshain (Berlim, Alemanha)
Após a queda do muro de Berlim, houve uma grande migração dos moradores de bairros da parte oriental – como Friedrichshain, para a parte capitalista da cidade, em busca de emprego, vida moderna e habitação confortável. Este fato abriu oportunidade para que a área, abandonada, fosse ocupada por imigrantes turcos, punks e artistas, em sua maioria jovens e pobres, e essa mistura naturalmente transformou o lugar em um grande fervilhão alternativo, criando uma subcultura de diversas tribos e origens, que hoje promove gastronomia, arte e entretenimento de alto padrão, atraindo berlinenses, turistas do mundo inteiro e é utilizada pelo próprio governo como marca turística.
Consequentemente, o fenômeno trouxe um assombroso encarecimento do custo de vida e um acelerado processo de gentrificação: o caso berlinense foi tão violento que o parlamento alemão criou uma lei proibindo bairros com altos índices de gentrificação subirem os preços dos aluguéis mais do que 10% acima da média da região. A lei vem sendo aplicada em Berlin desde Maio de 2015, e em breve também será institucionalizada em outras cidades alemãs.
Há ainda casos de revitalização urbana que podem ser pensadas a partir do conceito de Gentrificação: La Barceloneta (Barcelona, Espanha); Puerto Madero (Buenos Aires, Argentina), Malasaña (Madrid, Espanha). No Brasil, há estudos de caso, por exemplo, na Lapa e Vidigal no Rio de Janeiro, e na Vila Madalena em São Paulo. Mas isto é assunto para uma outra conversa…
E por que eu deveria me preocupar com Gentrificação?
Olha, até existem especialistas que não “criminalizam” a gentrificação, por acreditar que este é um processo decorrente da chamada “Sociedade Pós-Industrial”, na qual as relações de consumo (demanda) ditam as relações de produção (oferta) e esta é uma condição natural e irreversível do nosso tempo.
O debate é amplo e polêmico. No entanto, desconfiamos que a gentrificação é potencialmente mais nociva do que saudável. Por constituir um processo típico de especulação imobiliária, a gentrificação precisa de muito investimento e respaldo do poder público para atender à demandas de interesse privado. Ou seja, a cidade (enquanto “a coisa pública”) passa a ser planejada de acordo com a vontade do interesse privado, que não necessariamente é a mesma vontade da população como um todo.
Por outro lado, estudos recentes realizados nos Estados Unidos apontam que moradores antigos de bairros gentrificados não apenas não foram “expulsos” por conta da valorização imobiliária, como conseguiram, por causa da gentrificação, ampliar suas rendas. Apesar de serem estudos inconclusivos, pois tratam mais de proprietários (que possuem renda sobre o imóvel) e menos de inquilinos (que pagam a renda para o proprietário do imóvel), esse argumento coloca à prova alguns “mantras inquestionáveis” da gentrificação e abre precedente para pensar esse fenômeno a partir de uma perspectiva mais “saudável” para a vida urbana contemporânea.
Do nosso ponto de vista, ainda resguardamos algumas desconfianças em relação ao processo de gentrificação: para qual bairro as pessoas “expulsas” do bairro foram? Esse bairro recebe os mesmos investimentos públicos e desperta a mesma atenção que o bairro gentrificado?
Além disso, se para o bairro bonito pode tudo, e para o feio não pode nada, então não há um projeto de cidade inclusiva e democrática acontecendo nas nossas cidades. A gentrificação apenas será bacana e descolada de verdade quando todos os bairros puderem ver a renda de seus imóveis sendo elevadas, propiciando uma vida cultural, rica, vibrante, que respeite as tradições de cada lugar. Mas nesse caso… Seria possível utilizarmos o termo?